Filme “O caçador de pipas” voa alto
Com sucesso garantido, eles apostam no roteiro fiel ao livro
Por Anneliese Lobo
A adaptação de livros para a telinha é uma tarefa bastante difícil. Geralmente os leitores saem das salas de cinema decepcionados. Afinal, quem nunca escutou alguém dizendo “o livro foi muito melhor” ou até mesmo “eu esperava mais do filme”? Fato é que quando se trata de gêneros diferentes (como, no exemplo, livro e cinema) as comparações devem ficar a parte. Mas, mesmo atento as diferenças, não há como não se encantar com o trabalho realizado pelo roteirista David Benioff em “O caçador de pipas” (ou, no título original, “The Kite Runner”). A fidelidade à trama – ainda que condensando algumas partes, é claro – faz com que a adaptação seja bastante eficaz e sensível. Felizmente, neste caso, o roteiro do filme está em perfeita harmonia com a obra a que lhe deu origem.
O romance do afegão Khaled Hosseini, publicado em 2003, virou um dos grandes best-sellers dos últimos anos. Afinal, não por acaso, ele foi publicado em nada mais nada menos que 42 línguas. Possivelmente, o grande público de leitores e, principalmente, o enredo facilitaram bastante o também sucesso do filme que levou o mesmo nome (O caçador de pipas) em 2007.
O foco narrativo gira em torno do sentimento de culpa alimentado por Amir (Zekeria Ebrahimi), filho de um rico empresário (Homayoun Ershadi) – ou, como chamado no filme, pashtun –, por não ter conseguido ajudar o melhor amigo, Hassan (Ahmad Khan Mahmidzada), em uma circunstância de extrema humilhação. Este fardo é carregado durante toda a sua vida até que um telefonema passa a ser o ponto de virada mais decisivo da narrativa. E é nesse momento que Amir (agora interpretado pelo ator Khalid Abdalla) resolve acertar as contas com o passado. Com o atenuante de ser Hassan seu mais fiel escudeiro, e dar provas de sua lealdade durante toda a trama, Amir acaba por descobrir que aquele menino era, na verdade, seu meio-irmão.
A história retrata a Cabul de 70, antes da invasão soviética, e se alonga até os anos 90, com a chegada ao poder dos guerrilheiros talibãs. A ambientação também foi um espetáculo a parte. O diretor Marc Forster teve a preocupação de recriar o cenário convidando o telespectador a conhecer o clima de conflito no Afeganistão. Entretanto, o faz com filmagens da trama gravadas na região de Kashnar, na China, que era muito mais seguro, o que não subtraiu a autenticidade do roteiro. Na realidade foi uma bela oportunidade para compreender um pouco da história política e social desse povo. Afinal, desde quando os episódios do Osama Bin Laden vieram à tona, todos buscaram conhecer algo mais do território que abrigou o terrorista. Talvez daí a avalanche de títulos como “O livreiro de Cabul” (Asne Seierstad), “As mulheres de Cabul” (Harriet Logan), “Cabul no inverno” (Ann Jones), etc. Destaque especial ao incrível torneio de pipas, que deram o colorido necessário para a trama já tão acinzentada.
Outra grande jogada foi a participação decisiva do autor do livro em todos os momentos da construção do longa. Primeiro, ele deu lá seus “pitacos” para a montagem do roteiro: determinou que algumas cenas não poderiam estar de fora – como no caso da comovente cena do romã podre, em que Amir (Zekeria Ebrahimi) esperava atenuar seu sentimento de culpa por meio do castigo que queria receber de Hassan (Ahmad Khan Mahmidzada), – e aprovou a concisão e, até mesmo, exclusão de outras. Depois, na escolha dos atores. Sem falar que esteve presente também durante as filmagens na China.
Aliás, poucas adaptações conseguiram ser tão fiéis à descrição de personagens como em “O caçador de pipas”. Os atores principais eram desconhecidos, entretanto Amir e Hassan parecem ter saltado das páginas da obra de Hosseini. Além do detalhe de (vale ressaltar) serem afegãos eles ainda possuíam a habilidade de falar no dialeto persa – usado no Afeganistão. Hassan, o hazara com “cara de boneca chinesa, olhos verdes e lábio leporino”, foi brilhantemente interpretado pelo menino Ahmad Khan Mahmidzada.
Mas o que prevalece mesmo na trama são os conflitos humanos: de um lado o narrador e protagonista da história, personagem redondo com mudanças significativas durante toda a trama e repleto de fraquezas morais. É obrigado a lidar com sentimentos como inveja, rejeição, ciúmes, covardia, culpa, arrependimento. De outro, seu melhor amigo e irmão que dá uma lição de humildade, compaixão, lealdade, fidelidade, heroísmo, submissão, perdão, honra, amor. Já o antagonista, Assef (Ali Dinesh), é a personificação do mal. Simpatizante do nazismo, o menino mais parece um mini Hitler – o qual cultiva verdadeira adoração até a idade adulta. Ele é quem violenta Hassan. Já homem, se torna um talib, responsável por um grupo de fanáticos que governa o Afeganistão espalhando o medo.
Entretanto, tem um ponto de virada específico da trama que considero mais importante – e que, por sinal, mais marca tanto os leitores como os telespectadores – que é a do estupro de Amir. Uma filmagem sem exageros e bastante sensibilidade. O ato fica apenas sugerido através da movimentação de câmeras. Assim mesmo, tal cena gerou muita polêmica na vida real e tensões entre os povos afegãos. Por retratar bem a realidade, fica marcada nesta cena a rivalidade entre etnias (Hazara e Pashtun). Este fato acabou adiando o início da estréia do filme – fato que provocou ainda mais rebuliço.
Para aqueles que ainda não conferiram a adaptação e costumam se emocionar facilmente vale preparar os lencinhos de papel e voar até o Afeganistão comandado pelas mãos Marc Forster. Será uma viagem totalmente convincente para o ambiente afegão. E quem sabe, após assistir ao filme, possa até querer conferir as duas versões da história. Inshallah!